7 de janeiro de 2010

O Silêncio dos Dias

A fez ums Grande Reportagem sobre a Unidade de Surdos do nosso Agrupamento (Sé - Faro), que emitiu em 26/11/ 2009 e que pode ouvir seguindo o link
http://www.tsf.pt/paginainicial/AudioeVideo.aspx?content_id=1431254

Como os principais interessados não a podem ouvir, aqui deixamos a sua transcrição.
Coragem para a leitura!

Repórter: Maria Augusta Casaca (MAC)

Entrevistados (por ordem de entrada):
Fernando (F) - Estudante
Mariana (M) - Estudante
Aléxia (A) - Estudante
Aida Rita (AR) – Psicóloga e mãe de um estudante
Ana Maria Santos (AMS) – Mãe de uma estudante
Justina Mendes (JM) – Professora, Directora do Agrupamento de Escolas da Sè - Faro
Paulo Cunha (PC) - Professor
Pedro Viola (PV) – Funcionário da E:B 2,3 de Santo António, fadista amador
Carlos Daniel (CDC) – Estudante
José Palma (JP) - Professor
Humberto Viegas (HV) – Professor, Coordenador da Equipa para a Educação Bilingue de Alunos Surdos
Carla Domingos (CD) – Intérprete de Língua Gestual Portuguesa
Raquel Martins (RM) – Funcionária Pública
Paula Bárbara (PB) – Funcionária da Associação de Surdos do Algarve
Isilda Gomes (IG) – Governadora Civil do Distrito de aro
Túlia Correia (TC) – Formadora de Língua Gestual

( Toque de de campainha, sons de passos e crianças)

(MAC) - Os sons da sua escola, o toque para a entrada o ruído das outras crianças nunca serão ouvidos pelo -Fernando, pela Mariana ou pela Aléxia:
(F) - Chamo-me Fernando, tenho 10 anos, gosto de jogar à bola. Eu não gosto de Matemática, gosto de Língua Portuguesa.
- Mariana.
(MAC) - E de que cor são os teus olhos, Mariana?
(M) - Verdes.
(MAC) - Tens que idade? Quantos anos tens?
(M) - Ãnh?
(MAC) - Quantos anos tens?
(M) - Sete.
(MAC) - E o que é que gostas mais de fazer?
(M) - Gosto de Matemática, gosto de brincar.
(A) - Aléxia.
(MAC) - E o que é que gostas mais aqui na escola?
(A) - Aprender coisas, palavras, (para) o futuro.
(MAC) - A Aléxia preocupa-se com o futuro. Nasceu com uma surdez profunda, como quase todos os seus colegas, os 38 jovens que fazem parte da Unidade de Surdos do Agrupamento de Escolas da Sé, em Faro. O único, no Algarve, que recebe alunos com esta deficiência, no Algarve. Percebe o que dizemos através da tradutora de Língua Gestual. Como não ouve, consegue articular poucas palavras e para isso faz um enorme esforço. Gosta de falar dos seus gostos na escola:
(A) - Matemática.
(MAC) - Tens amigos que ouvem? Consegues comunicar com eles bem?
(A) – Nunca.

(piano)

(MAC) - Aléxia anda no 6º ano da Escola EB 2,3 de Santo António. Apesar das dificuldades que a vida lhe coloca pela frente sonha chegar até à Universidade. Esse será também o caminho do Frederico. Há 18 anos, quando nasceu, a mãe, psicóloga de profissão, percebeu meses mais tarde que ou filho nãoemitia os sons habituais dos bebés:
(AR) - Nessa altura, o Frederico começou…, em vez de começar a produzir mais sons e sons com significado. Os sons que produzia até foram diminuindo, quer dizer, cada vez produzia menos e aquilo assustou-me. E depois começou também a ser uma altura em que eles começam a ser cada vez mais independentes, não é, e saem de perto de nós. É que eu chamava-o e ele não vinha, não é? Mas, por outro lado, depois, eu mudava-lhe as fraldinhas e dizia assim: - Vá, vá já pôr no caixote do lixo! E ele ia. (ri) E eu achava… E depois falei nisso aos médicos, ao Pediatra, não é?! e o Pediatra dizia-me: - Ah, não! Não pense nisso! Esta é uma fase em que eles são muito egocêntricos, é que nós chamamos e eles não ligam e que não sei quê… Só que eu… pronto… Sentia mesmo aquilo. E houve uma altura, que até achei, senti-me mesmo muito mal com a situação porque parecia que era eu que estava a querer que o meu filho fosse surdo quando toda a gente me dizia que não.
(MAC) - Mas os sentidos de mãe não enganam e Aida Rita teve a confirmação do que mais temia.
(AR) - Naquela altura, quando realmente me disseram “ o seu filho é surdo”. Lembro-me perfeitamente de me ter… Foi uma médica que veio dizer, disse: - olhe é surdo e não sei quantos, mas é muito inteligente! . – E eu acho que devem ter sido as coisa…as palavras mais duras que eu disse na minha vida, mas foi assim, disse: - Sim eu sei! Isso eu sei! Mas assim: “Sim! Isso eu sei!” Lembro-me perfeitamente de, na altura, pensar assim “Eu nunca vou conseguir falar com o meu filho”. Foi aquilo que eu pensei: “Eu nunca vou conseguir falar com ele! Ter uma conversa!” E isso foi a coisa mais dramática que me aconteceu. Foi… Lembro-me, na altura, só pensei assim “Olha quero ir com ele e com o Zé para uma ilha deserta.” Queria que nós os três fossemos para uma ilha deserta e pronto. Deixássemos de viver no mundo e pronto!
(MAC) - As ilhas desertas passam ao lado da nossa vida e é preciso enfrentara dura realidade. Foi o que optou por fazer Ana Maria Santos. Ana é mãe de Joana, recentemente medalha de ouro no campeonato do mundo dos Surdolímpicos, em Taipé. Quando percebeu que a filha não ouvia foi um choque na sua vida. Hoje, Joana só lhe traz alegrias:
(AMS) - Quando ela entrou para o infantário nós tínhamos que ser ouvidas por uma Assistente Social, e eu estava a chorar e quando entrei não conseguia falar. Pronto, não conseguia falar com a a Assistente Social. E depois, ela tinha o processo e começou a falar e disse: - É assim, a sua filha… Pense que a sua filha ainda lhe vai dar muitas alegrias na vida. E realmente isso marcou-me e sempre que há alguma coisa de bom para a Joana e que eu fico alegre, eu lembro-me sempre dessa frase de há muitos anos. É claro, ela devia ter para aí 3 anos, se calhar, nessa altura. E realmente é. A Joana tem sido, para além de uma boa filha, carinhosa e tudo mais tem-nos dado sempre muitas alegrias, tanto na escola como nas competições. Aliás, vamos sempre que podemos, andamos atrás dela, vamos atrás dela: Madrid, França… Andamos põe aí atrás dela.
(MAC) - Mas há pais a quem é difícil assumir a deficiência dos filhos e escondem-na até ao limite :
(AR) - É o não querer que os outros saibam. É o passar o mais despercebido possível! Há pais, por exemplo, aqui na Unidade de Surdos, que têm muito receio da Língua Gestual, nos pequeninos, porque depois as pessoas percebem que ele é surdo! E enquanto não se percebe que é surdo passa despercebido, não chama a atenção. O primeiro passo, e aquilo que eu acho que é fundamental, para os pais de surdos, é fazerem uma coisa que em Psicologia se chama “o luto proibido”. E “o luto proibido”, porquê? Nós fazemos o luto por alguém que morre e aqui temos de fazer um luto que é proibido porquê? Porque o filho não morreu, o filho está lá, mas nós temos de fazer o luto por um filho que não existe, por um filho que deixou de existir. Temos de fazer o luto por um filho que nós imaginámos normal, não é?! Mas esse filho morreu e agora o que nós temos ali é outro filho, e temos de o aceitar, e temos de o assumir. E é preciso fazer esse luto.

(harpa)

(MAC) - Prosseguir, dar a estes meninos e jovens o que têm todos os outros, é o que tentam fazer os professores que os acompanham dia-a-dia. Aqui, quiseram ir mais longe e introduziram aulas de Educação Musical. Justina Mendes, Directora da Escola de Santo António, lembra que perante esta ideia inovadora recebeu algumas resistências:
(JM) - Quando eu cheguei à Direcção Regional eles riram-se. Mas o que é isto?! Tu estás maluca?! Então, agora, metes Educação Musical a alunos que não ouvem, e tal! E eu disse : - deixem-nos fazer a experiência. Se não resultar, se virmos que é inútil, se virmos que realmente estamos a dar uma sobrecarga aos miúdos e que isto não conduz a nada, nós recuamos. Foi um sucesso. Absoluto.
(MAC) - O desafio foi colocado ao Professor Paulo Cunha, que na altura aceitou com reticências:
(PC) - Com receio de falhar, porque é algo novo para mim, mas muito de novo para eles. E o que aconteceu é que, eu sinto-me, agora sim, já relativamente preparado para ser professor de surdos. E muito devo a eles, porque não encontrei, ou encontrei muito pouco em termos de material que pudesse ajudar nas aulas. Isto foi tudo fruto de uma grande vivência em que eles tiveram que me aturar, nas minhas experiências. Eu fui experimentando, fui usando-os e neste momento sei um bocadinho mais daquilo que é possível fazer com eles.
(MAC) - Começou por testá-los para ouvirem cds com o som muito alto, encostados a uns armários e a desafiá-los para distinguirem os timbres dos instrumentos de uma orquestra. :
(PC) - E qual foi a minha surpresa quando, em 10, tive aqui surdos que acertavam 5 e eu testei mais que uma vez e apercebi-me que, através das vibrações, eles conseguiam aprender o timbre dos instrumentos, portanto. Quando vibrava mais era um som mais grave, portanto se era um mais grave, provavelmente era um timbale, se… provavelmente seria um contrabaixo; se sentiam qualquer coisa de vibração, provavelmente seria um fagote, seria um oboé. Quando não sentiam nada, provavelmente seria um violino. Estava lá nos agudos e eles como não ouvem agudos… E, comecei a perceber que eles conseguiam aprender as vibrações dos timbres dos instrumentos.
(MAC) - Os auscultadores vibratórios oferecidos mais recentemente por uma empresa do ramo permitiram dar o salto em frente e os jovens sentem sensações nunca antes alcançadas: o ritmo e a vibração.
(PC) - Fazerem sobressair as frequências médias-graves que no fundo é aquelas frequências que os jovens, hoje, gostam muito nas discotecas. Os jovens…Hoje e sempre. São aquelas frequências que mexem connosco, qu nos põem a vibrar por empatia e por simpatia. Aqui estou a usar o mesmo princípio. Estes auscultadores servem precisamente para marcar a pulsação da música.
(MAC) - O Professor dirige-se ao Carlos, um rapaz de 15 anos. Como para toda a turma as suas palavras são traduzidas por uma intérprete de Língua Gestual:
(PC) - E o micro não consegue gravar sinais, portanto, hoje é fundamental que vocês se expressem com sons. Há aqui algum mudo à minha frente? Não?! Ah, então eu vou colocar-te os auscultadores vibratórios onde tu vais poder sentir a vibração e a marcação da pulsação, depois, tens a possibilidade de ter ao teu lado um fadista e a única coisa que nós queremos aqui, efectivamente, é que saia som, porque a ideia é que a tua voz chegue a todo o Mundo.
(MAC) - Para incentivar o aluno, Paulo Cunha diz-lhe para não ter receio. Será acompanhado por Pedro Viola, um funcionário da escola, fadista nas horas vagas. Pedro recorda o sucesso de um concerto que Carlos e os colegas deram para uma plateia:
(PV) - Ao dizer a alguém: olha, vou cantar para surdos, em parte as pessoas ficam assim: vai cantar para surdos, para quê? Então, se não ouvem nada…! E, não, podem ficar cientes e conscientes que o fado, assim como qualquer outra canção pode chegar até mesmo àquelas pessoas que não ouvem, mas sentem. O Carlos, um dos alunos que aqui está presente hoje, ele disse-me: - Eu estava com um certo receio desse acontecimento”. E no final: - “Então gostaste? “ Fiz-lhe essa pergunta:” - Gostaste?” E ele disse:” - Já não tenho medo.”
(PC) – Vamos à música. Sem preocupações, porque tu não estás a ser filmado, ninguém te vai ver. Tu, a única coisa que vais fazer é deitar cá para fora a tua alma de fadista, tu reparaste que cantaste o fado e arrebataste o público. Puseste o público de pé!
(MAC) - Por isso, o Carlos tenta outra vez cantar o poema de Manuel Alegre que tem ensaiado até à exaustão. Ele próprio não ouve o que canta:
(CDC) - … que morro por meu país, que morro por meu país, que morro por meu país! (palmas)
(PC) – Portanto, agora a seguir a isto, só gravar um disco.
(CDC) – É melhor na Internet.
(PC) - É melhor na Internet, ok. Então, depois, vamos te pôr na Internet. Vamos pedir à TSF se te põe um bocadinho na Internet.

(viola)

(MAC) – Estes jovens são trados com um carinho especial pela escola onde são integrados em determinadas disciplinas em turmas normais, mas o professor José Palma, Director da turma do 6º ano, não esconde as dificuldades por que passam alunos e docentes:
(JP) - Às vezes é como se a escola fosse um barco a remar contra ventos marés, porque, o que se passa é que eles têm dificuldades profundas, resultantes da surdez profunda que têm, portanto… É inimaginável o que é crescer, sem ouvir a maior parte dos sons e associado a isso há outras condicionantes que tornam tudo muito complicado: estes miúdos, todos vêm de fora de Faro, alguns vêm de relativamente longe, portanto perdem muito tempo em transportes. Depois é preciso conciliar vários interesses e eles acabam por passar o dia todo fora de casa, na escola. Estes miúdos, no caso concreto dos meus alunos do 6º ano, são todos mais escolarizados do que os Encarregados de Educação, do que o agregado familiar, o que não facilita porque era muito importante poder contar com a colaboração da família que, na maior parte das situações, no caso destes miúdos, em todas as situações, não está em condições de a dar. As relações entre a Língua Gestual e a Língua Portuguesa são muito complexas e tornam muito difícil ensinar, particularmente a Língua Portuguesa e, portanto, todas as outras disciplinas, também.
(MAC) – Na escola estes alunos estão como num casulo ,protegidos do mundo, mas quando dali saem a vida não lhes sorri. Entre as famílias de jovens com esta deficiência, nem todas conseguem comunicar e, por vezes, notam-se as baixas expectativas e o pouco investimento que os pais fazem nestes filhos:
(JP) - Eles em grande medida vivem num mundo à parte. Eles queixam-se frequentemente que quando estão em família, em particular, se se reunir uma família relativamente numerosa, eles ficam completamente à margem porque não conseguem acompanhar as conversas, mesmo numa família reduzida, mesmo no estrito convívio com pai ou mãe é muito difícil comunicar. É verdade que às vezes são as circunstâncias da vida não permitem que as pessoas se dediquem, por exemplo a aprender Língua Gestual, que facilitaria muito o contacto com os filhos, mas muitas outras vezes também é verdade que há uma rejeição e um abandono, por parte dos pais, que desistem dessa comunicação a um ponto que chega a arrepiar. Ainda há pouco uma outra intérprete também me dizia de uma miúda que tinha que levar para casa o recado para trazer para a escola quatro euros e meio da… do Seguro Escolar e a miúda sentia-se incapaz de fazer isso, suplicou à intérprete que lhe escrevesse um recado na caderneta porque ela não era capaz de dizer isso ao pai, ou à mãe! Não há comunicação naquela família.
(MAC) – Não é o caso da família do Frederico, aluno do 11º ano de Design e Comunicação, da Escola Secundária Tomás Cabreira. O pai e a mãe esforçaram-se por aprender Língua Gestual e mesmo com as limitações de um vocabulário mais pobre, comparado com o da Língua Portuguesa, a comunicação entre os três fluí sem dificuldade:
(AR) – Eu chego a casa e vou fazer o jantar, é uma coisa tão simples quanto isso, e estou, por exemplo a descascar batatas, que não é preciso mais nada e um filho ouvinte é capaz de estar no quarto e estar a falar com a mãe. Estão a falar, não é?! Se o meu filho vai falar comigo, para já eu tenho imediatamente de parar de descascar as batatas porque senão corto-me, não é?! E depois tenho de olhar parta ele, para ver o que ele me está a dizer e depois tenho de largar a batata e aquela tralha toda porque preciso das mãos para falar com ele E então isto é um tempo imenso! E depois ele é uma grafonola, porque é verdade! Eu costumo dizer assim: é o conversador de silêncios. Ah… O meu filho conversador de silêncios, porque, quer dizer ele fala, fala, fala, fala, quando nós chegamos, tectectectec, está sempre a perguntar coisa, está sempre…. fala imenso connosco e nós não conseguimos e eu tenho que dizer assim: - pára só um bocadinho, deixa-me pôr só o jantar ao lume, depois a gente já fala.
(MAC) – Noutros casos, como lembra o Professor Humberto Viegas, Coordenador da Unidade de Surdos, nem sempre os pais conseguem aprender aqueles difíceis sinais feitos com as mãos:
(HV) - Como para todas as aprendizagens nós temos que estar motivados e a motivação por um lado existe mas por outro lado, em função das dificuldades da língua as pessoas acabam por desistir um pouco. Uma das coisas que temos vindo a fazer ao longo destes anos é formação quer para pais, quer para professores quer para funcionários. Os pais, muitos deles, a maioria deles até tem ido algumas vezes mas depois vêem que aquilo é muito complicado e acabam por ir desistindo.
(MAC) - Viver num mundo de silêncio, na escola ou em casa , é diferente de enfrentar um mundo ruidoso lá fora. Aí, sem conseguirem explicar-se, os surdos, enfrentam duras provas. Justina Mendes, Directora da Escola conhece bem estes problemas.
(JM) -Nós vamos a um tribunal, e regra geral pedem-nos aqui um intérprete porque não têm, lá fora não existem estruturas capazes de dar respostas a estes miúdos. Vai a um hospital, como é que este miúdo é atendido no hospital se tem uma dor, se tem um problema qualquer, uma angústia, se tem uma má disposição, o hospital não tem intérpretes, e eles são muitos, só aqui neste Agrupamento estão trinta e oito, são muitas crianças e a sociedade ainda não está preparada para estes miúdos. Eles vivem no seu mundo de silêncio e há um silêncio grande da sociedade em relação aos miúdos, à surdez.
(MAC) - Para ajudar quem tem esta deficiênci,a Carla Domingos tirou o Curso Superior de Intérprete de Língua Gestual. Apoia os alunos que já se tornaram seus amigos dentro e fora da escola.
(CD) - Em termos de relacionamento eu costumo dizer que sempre fui para eles a irmã mais velha, aliás é como eles me vêem porque eu acompanho-os tanto dentro da aula como fora da aula, quando têm algum problema é comigo , quando vamos a algum local chamam logo a Carla, é tipo uma muleta que funciona assim como irmã mais velha. Às vezes combino com eles, vamos à praia e vou buscá-los a todos, faço a filinha de carro, vou buscá-los a todos, depois vamos à praia, depois vou levá-los a todos, para eles se sentirem acompanhados e os pais sentirem que eles estão com um adulto que os protege.
(MAC) - Mas Carla sabe também que apesar do esforço que a escola faz para os integrar, a dificuldade de comunicação com os outros estudantes está sempre presente.
(CD) -Eles são… Eles funcionam como um gueto, como são suficientes uns para os outros não têm necessidade de procurar o exterior, então funcionam como uma comunidade muito fechada e restrita, como é uma característica da comunidade surda e ao funcionarem assim isolam-se um pouco em todo o tipo de actividades. Nós neste momento, a turma de integração do 6ºano está sensibilizada para o facto, trabalhamos várias vezes Língua Gestual com os ouvintes também para poderem comunicar com eles, fazem trabalhos em equipa em que os ouvintes estão integrados, muito bons, e as coisas já funcionam de uma forma diferente, já não há aquela problemática da comunicação.
(MAC) – Funciona assim na turma onde estão integrado es, em comparação com os outros o corpo docente considera-os até alunos mais afectivos. Mas nem sempre a deficiência é compreendida e, por vezes para algumas crianças e jovens os surdos são alvo de brincadeira sobretudo pelos gestos e sons que usam para comunicar.
(CD) - Noto que se fecham mais ao grupo em si, ou se revoltam, revoltam e vêm-me dizer:- e aquele rapaz disse isto e assim e assim - e automaticamente vou confrontar o rapaz com aquilo que ele disse e com eles e explico ao rapaz . Há crianças que compreendem e não voltam a usar este tipo de abordagem e mas há outras… que são trabalhos que têm de ser feitos mais frequentemente, com uma sensibilidade diferente para eles começarem a despertar esse tipo de sensibilidade para estas pessoas que são um pouco diferentes.
(MAC) - A mãe de Frederico nota o mesmo comportamento. Há deficiências que são olhadas com pena, outras alvo de chacota.
(AR) - Respeita-se um cego, ajuda-se um cego a passar a rua, ajuda-se, desviamo-nos e tal, é aquela coisa. O surdo é gozado porque também nós chamamos surdo a qualquer ligeira deficiência auditiva, quando surdo é um surdo que não ouve mesmo, não ouve, não fala. Os outros têm deficits auditivos. Outra coisa que se dizia era surdo-mudo, não é surdo-mudo, mudos são aqueles que não conseguem produzir vocalizações, têm problemas a nível das cordas vocais. Não é ocaso, os surdos são surdos ,não falam porque não ouvem, não tem matriz da língua , e… e…., mas portanto, produzem vocalizações que não controlam e portanto são gozados, uh, ah,aquela coisa e as pessoas gozam um bocado com isso, e portanto o surdo é gozado.

(piano)

(MAC) - Raquel Martins, trinta e quatro anos, senta-se todos os dias à secretária na Câmara Municipal onde trabalha. Trata dos assuntos que se relacionam com empreitadas e fornecimentos. Raquel tem uma surdez profunda e não foi fácil arranjar emprego. Queixa-se que na Função Pública é avaliada em pé de igualdade com todos os que ouvem. Desde sempre, e por vontade dos pai,s andou em duas escolas, uma para ouvintes, outra para surdos e com muita força para ultrapassar dificuldades conseguiu aprender a falar e tirou um Curso Superior de Gestão. Tempos houve em que pensou desistir.
(RM) - O primeiro dia em que entrei na Universidade disse isto é um mundo novo, é uma nova experiência, porque a maioria eram todos ouvintes, não tinha conhecimento como era a entrada na Universidade, tem muitos , mais alunos, tem sessenta ou oitenta alunos no anfiteatro, era muito complicado de ouvir o professor explicar. Eu tinha vontade de desistir só que os meus pais deram-me muito apoio e disse vai fazendo com calma, mas eu queria fazer tudo logo de uma vez porque como tem tanta vontade eu queria acabar de uma vez por todas, estar mais descansada e por fim consegui tirar o curso, foi muito difícil.
(MAC) – Raquel considera os surdos melhores trabalhadores do que os ouvintes em muitas tarefas. Aprendeu Língua Gestual e hoje tenta ajudar outros deficientes auditivos naquilo que precisam:
(RM) - Contactaram comigo para poder dar apoio aos Serviços, ao médico, ao advogado porque se sentem mais à vontade porque como eu estudei, como tenho mais experiência e dou apoio aos outros que têm muitas dificuldades, só mandam por mensagens, preciso da sua ajuda para ir ao Banco, para ir ao Centro de Emprego…

(piano)

(MAC) – De olhos claros, rosto muito atento, Túlia Correia, 33 anos, tenta fazer o mesmo. É Formadora de Língua Gestual na Escola de Santo António e também ela surda. Já se deparou com situações em que teve que bater o pé para defender os direitos de quem não ouve:
(TC) - Foi no Centro de Emprego e então eu disse que queria tomar conta de uma criança e disseram-me. “Ah! É surda, ah então não pode!” e depois, um dia, (um advogado) veio ter comigo e expliquei-lhe o que se passou e disse “Ai é?! Então vamos lá falar com essa senhora!”. E depois fomos. Disse “-Desculpa lá, eu gostava de saber porque é que a surda não pode ser baby-sitter?! É porque não ouve. Ai é? Então, se um dia ela for mãe, ela não pode tomar conta do filho?! Se fosse mãe ou não, eu tinha que estar em pé de igualdade com as outras. É uma questão de responsabilidade.
(MAC) – Os pais insistiram sempre para que aprendesse a falar. Pede para conversarmos pausadamente, para perceber o que dizemos através da leitura labial. Queixa-se dos poucos direitos que os surdos têm, até de pormenores que para eles são essenciaiss e que ninguém percebe que devem ser alterados, como compreender o que se vê na televisão através da pequena janela onde se encontra a tradutora:
(TC) – É muito chato, estas janelas muito pequenas porque não conseguimos ver os gestos nem a expressão facial. Porque lá em Espanha, por exemplo, acho que há um canal destinado às pessoas surdas e a dimensão da televisão é igual, pronto, a mesma, só que eles aumentaram o tamanho da janela para as pessoas verem melhor. Isso é muito bom. Aqui em Portugal, infelizmente, ainda não temos isso.
(MAC) – Para acudir às pessoas que todos os dias batiam à porta com problemas, Paula Bárbara, funcionária e, ela própria, os ouvidos da Associação de Surdos do Algarve, recorda que houve necessidade de agir:
(PB) - Nós começamos a debater-nos com os problemas que ouvíamos na comunidade sobre assaltos, pessoas grávidas, pessoas… pronto, com problemas de incêndios em casa, ou outros problemas e já tínhamos verificado que às vezes havia números directos, por exemplo, para a polícia, ou para os bombeiros e tal… E então lembrámo-nos de fazer uma compilação mais abrangente, nomeadamente que tocasse todas as vertentes, desde a polícia, bombeiros, a GNR, APAV. Todos acharam conveniente que nós dirigíssemos as nossas pretensões ao Governo Civil.
(MAC) – E assim fizeram. Isilda Gomes, há um ano, Governadora Civil do Algarve acatou a ideia e o Projecto SMSVOZ, pioneiro no país, foi para a frente:
(IG) - O surdo funciona com um telemóvel de uma forma extraordinária, portanto, eles têm ainda uma maior sensibilidade para estas novas tecnologias que lhes dão alternativas. Ora, sendo que toda a gente hoje tem um telemóvel, bastava encontrar-mos um número que fizesse essa ligação ao Centro Distrital de Operações e Socorro e que pudesse ser perfeitamente e claramente entendido qual era o tipo de socorro que estava a ser pedido. Daí criou-se um número que é o 911120000. Criámos depois, posteriormente, um manual, um pequeno manual, que orienta, isto é, se a pessoa precisar de socorro para… porque tem um incêndio, por exemplo um incêndio, tem que marcar, apenas tem que marcar um indicativo do incêndio. E eles sabem exactamente qual é através do manual. Nós fizemos vários testes, e os próprios surdos, é interessante, que nos dias que se seguiram à assinatura do Protocolo e ao lançamento do Projecto, eles próprios fizeram vários testes. Eles próprios tentaram ver se funcionava ou não. E funciona perfeitamente e claramente.
(MAC) – O Projecto foi acarinhado por Idália Moniz, Secretária de Estado da Reabilitação que pretende alargá-lo a todo o país.

(piano)

(MAC) – Na sua surdez, Joana, 18 anos, entre as aulas na Escola Secundária Tomás Cabreira, tornou-se muito independente e, apesar de tudo, vive feliz:
(AMS) - Tenho assim uma conversa das duas, ela e a irmã, e então, estavam a ver televisão, algum um programa sobre medicina, ou assim e alguém que e4ra doente e que de repente, com uma operação ficou curada. E a irmã disse-lhe: “ - Olha pode ser que descubram alguma coisa e tu vais ficara ouvir como nós!”E ela disse” _ Eu não quero. Eu sinto-me feliz assim.” (ri)
(MAC) - Mas o Frederico, com a mesma idade, por vezes questiona as barreiras que a deficiência lhe coloca:
(AR) – A primeira vez que ele disse que tinha pena de ser surdo foi este ano” - Ah, porque os surdos são muito confusos e armam muita confusão e há muitos mal-entendidos… e porque não sei quantos, e tararan, tararan. “ -. E eu disse: “ – Oh Frederico, mas isso acontece com os ouvintes, também… Também não é assim…!” Queria ser ouvinte… “ E não sei quê E ele disse assim: “- Pois é, mas vocês, ouvintes, podem escolher os vossos amigos e eu não posso escolher!”
(MAC) – A Raquel, já adulta e com mais experiência de vida, sabe que há coisas que nunca poderá alcançar:
(RM) -As pessoas que ouvem podem fazer tudo e aquelas pessoas que não ouvem não podem fazer tudo, fazem metades das coisas. Eu gostava de fazer… Gostava de cantar, gostava de ouvir música, não posso, de ouvir rádio, não posso, eu não consigo entender o que as pessoas dizem.
(MAC) - A Raquel, a Túlia, o Frederico ou a Joana nunca poderão ouvir esta reportagem. E a Aléxia, qual será o seu futuro? Por enquanto, esta menina, de catorze anos, cabelo curto, olhos vivos, aprende a cantar o fado na aula de Educação Musical:
(A)- É uma casa portuguesa, com certeza, é com certeza uma casa portuguesa. ( Palmas).
(PC) - Como é que te soa, Aléxia fadista, soa-te bem? Então diz lá- Aléxia fadista.
(A) -Aléxia fadista.
(PC) - Ah valente! Temos aqui a Alexia fadista.
Música
(MAC) – Com os seus professores a Aléxia pode sempre contar:
(JM) - A Aléxia é uma miúda que vamos contar que siga a dança como hobby, a miúda tem a música dentro dela ,e é…nem que fosse só pela Aléxia, era das experiências mais gratificantes que um professor pode ter, ver que o som não é apenas no ouvido, ele é sentido por todo o corpo destes miúdos.
(MAC) – Mas quando sair da escola, talvez a realidade seja bem diferente:
(CD) - Eles só se vão aperceber quando amadurecerem mais e chegarem por exemplo ao mundo do trabalho. Aí eu acho que é a grande confrontação que eles vão ter, é ver que só podem optar por determinado tipo de curso, só podem optar por determinado tipo de profissões, que nunca poderão optar por serem surdos, e só aí é que eles vão conseguir compreender o choque que é na realidade, porque aqui é tudo…isto para eles é um paraíso.

(Música…)

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